horror e miséria

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Horripilante
18.6.04
Número de doentes abandonados em hospitais aumenta em Portugal
Segundo disse ontem à Lusa o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, Manuel Delgado, o número de doentes com alta clínica que permanecem nos hospitais porque não têm outro sítio para ir está a aumentar em Portugal. Estes «casos sociais» devem-se, em parte, ao envelhecimento da população associado a patologias que obrigam a demoradas permanências nas instituições, como acidentes vasculares cerebrais e outras patologias de difícil reabilitação. A patir do próximo mês, as misericórdias portuguesas vão disponibilizar 344 camas para acolher estes doentes que, apesar de já tratados, permanecem nos hospitais portugueses por não terem outro local para onde ir.

in Jornal Record, hoje, antepenúltima página

Existem velhos absolutamente sozinhos no mundo, em sentido figurado e em sentido literal, sem qualquer pessoa de família viva, sem amigos, nada, ninguém. Não serão a maioria, no entanto, como um simples exercício de cálculo pode facilmente demonstrar. É muito provável que a maior parte destas pessoas abandonadas tenha filhos, netos, sobrinhos, quando não irmãos, primos, tios.
O que acontece é que os velhos são despejados à porta dos hospitais, como fardos de palha, como sacos de lixo. Principalmente aos domingos, por exemplo em Santa Maria, há quem aproveite o bom tempo e os belos jardins para ali levar o Pai, ou a Mãe, ou a Avó, ou uma Tia, enfim, "algo" que esteja lá em casa a estorvar. Depois de uma voltinha pelas redondezas, senta-se o velho num banco, às vezes com o requinte de lhe deixar um farnelzinho, e pronto; basta meterem-se de novo no carro e arrancarem dali para fora, discretamente.
Este horror é um daqueles que praticamente ninguém refere, mas que existem, como sabe perfeitamente - em especial - o pessoal de enfermagem. Existem filhos que se "esquecem" dos pais nos jardins de Santa Maria, de S. José, de Santo António e em muitos outros hospitais por esse país fora; quanto maiores forem as instituições, quanto mais movimentadas, quanto maior for a confusão, mais fácil se torna a manobra de descarte. O velho ali fica, sem qualquer identificação, muitas vezes sem saber sequer o próprio nome ou incapaz de articular uma única palavra; são pessoas que tiveram um AVC, ou que têm Parkinson, ou Alzheimer, ou que, de qualquer forma, atingiram um estado de demência irreversível, catatonia, imbecilidade clínica .
E quem diz "filhos", com tal problema de amnésia, diz qualquer outro grau de parentesco. Há casos em que estes seres humanos - que estranhamente conseguem dormir - continuam a receber a pensão ou a reforma do velho que abandonaram. Evidentemente, quando este acaba por morrer, o corpo não pode ser reclamado: isso seria denunciarem-se e acarretaria uma série de maçadas, como tratar do funeral, dar "baixa" do beneficiário na Segurança Social, etc. Este deve ter sido um dos motivos que levaram o Governo a instituir a figura legal designada por "prova de vida", como garante de que é o beneficiário quem recebe o que lhe é devido e não qualquer canalha que se intitula "filho" de alguém.
Uma enfermeira confessou-me, trémula, que este horror "é de épocas": é mais aos domingos, sim, mas em especial nos meses de Junho, Julho e Agosto. Por coincidência, a mesmérrima sazionalidade que existe com o abandono de animais domésticos, os cães, os gatos, os periquitos. E com estes, por paradigma ou ironia maquiavélica, muita gente se preocupa; existem até campanhas publicitárias, incentivando o cidadão a não abandonar o seu animal de estimação quando vai de férias. Mas, evidentemente, não é fácil imaginar uma campanha, um "outdoor" por esses belos jardins com os dizeres: se vai de férias, não abandone o seu Pai ou a sua Mãe, porque eles sentem como nós. Ou, exemplo mais directo, os pais são nossos amigos. Isto seria impensável, até porque é reconfortante imaginar que existem "maus" que procedem a tal vileza com o cão ou o gato; os "maus" são os outros, claro. Mas é necessário conservar alguma saúde mental e, convenhamos, aceitar que algum ser humano faça isso mesmo com outro ser humano é demasiado, ninguém aguentaria sequer a hipótese de que isso existe. Mas existe.
E esses filhos de algo andam por aí, dardejando cromados, exibindo bronzes, impantes e serenos. Sorriem, apertam-nos a mão, são muito simpáticos, alguns até são nossos amigos, vizinhos, colegas. Ninguém diria...